terça-feira, 27 de outubro de 2009

Inclusão: não basta respeitar, é preciso valorizar as diferenças!

Jussara Hoffmann

Em que medida nossa sociedade é de fato inclusiva por princípio? Queremos e agimos de forma que nossas crianças e adolescentes se desenvolvam como pessoas diferentes? Valorizamos todos os dias seus sonhos, projetos, maneiras e tempos de viver e de aprender sobre as coisas? Observamos e aprendemos com eles sobre suas formas de se expressar, de se vestir, de pensar e de ser? Constituir uma sociedade inclusiva representa educar crianças e jovens para o contexto de diversidade que caracteriza a sociedade do século XXI, procurando aprender novos e especiais jeitos de educá-los e amá-los. Como seres humanos, somos diferentes. Essa é a nossa condição humana. Pensamos de jeitos diferentes, agimos de formas diferentes, sentimos com intensidades diferentes. E tudo isso porque vivemos e aprendemos o mundo de forma única, singular. Mesmo irmãos gêmeos e criados em condições semelhantes sentem e compreendem as situações cada um a sua maneira. Muitas famílias e escolas, entretanto, vêm sendo injustas com as crianças e jovens porque os comparam e exigem que se comportem, aprendam, gostem das coisas e das pessoas do mesmo modo – o que não é natural. A celebração da diversidade é um verdadeiro desafio. O modelo que pautou a educação no último século teve sempre por referencial a competitividade e a busca do padrão, da comparação, da classificação entre melhores e piores. Neste século, ao contrário, urge (re)valorizar a criação, a sensibilidade e o respeito pela dignidade humana para acabar com a miséria social gerada pelo espírito de competição que nos legou o passado. Dignidade é sinônimo de uma educação que leve em conta diferenças, desejos, reações, necessidades individuais sem impedimento de qualquer ordem (social, cultural, étnica, religiosa, física). Somos especiais e diferentes. Temos todos, crianças, jovens e adultos, necessidades educacionais e afetivas especiais, temos direito a uma vida digna, direito de sermos valorizados em nossa forma de viver, de trabalhar e de aprender. Fala-se, por vezes, em inclusão como a justiça de uma escola igual para todos. O que gera ansiedade em pais e professores, como se observa no relato abaixo: C. é amigo e camarada. Parece infantil. Os colegas de aula riem dele algumas vezes. Tem déficit de atenção e com isso problemas de aprendizagem. A família é muito preocupada. Ele possui uma irmã que é um ano mais nova e está na sua frente na escola. Segundo a mãe, ele é igual ao pai, que em sua época estudantil não foi compreendido criando aversão pela escola. A mãe diz que não quer que isso se repita com o filho. O C. não anota as atividades na agenda, copia pela metade, tem muita dificuldade de concentração, tem desempenho baixo em três matérias no segundo bimestre. Sinto-me incapacitada em lidar com esse déficit de atenção e preciso estudar mais do que tenho estudado. Ele é muito acessível. Meu objetivo é conhecê-lo melhor e ajudá-lo (Supervisora). Os adultos estão presos a processos uniformizadores e temem o diferente. Nem os pais, nem os professores de C. sabem lidar com seu jeito diferente de ser na escola, com seu tempo diferente dos outros de fazer as tarefas, buscando imediatamente causas ou “nomes” para sua diferença. Ao não saber lidar com as diferenças dos alunos, cada vez mais, pais e escolas rotulam crianças e jovens como “hiperativos”, “desatentos”, “lentos”, “desinteressados” - porque não se enquadram nas normas, nos tempos, nas regras impostas pelos adultos, que nem sempre levam em conta idades, interesses e possibilidades. São tantos os procedimentos arcaicos e uniformizadores na escola, que já nem mesmo os percebemos, tais como: - o uso do quadro de giz - que determina o tempo de ler, de copiar, de fazer as tarefas “para todos” (há muitas crianças que não conseguem acompanhar e são consideradas “lentas” - serão elas “lentas” ou as outras “rápidas”? Não é natural que assim seja?); - as explicações únicas para todos os alunos, mesmo que alguns já entendam os exercícios feitos ou que estejam sendo corrigidos (como exigir atenção ou concentração se a necessidade da explicação não existe? Terão vários alunos as mesmas dúvidas, ao mesmo tempo, a ponto de 30 crianças permanecerem atentas durante um longo tempo?) - as filas para entrada nas salas de aula e passeios (não é subestimar a capacidade de crianças e jovens serem educados a andar em grupos sem a “militarização” ainda imposta nas escolas? Não é discriminação as crianças mais altas sempre serem as últimas a entrar?) Muitas práticas arcaicas como essas permanecem sendo reproduzidas nas escolas com a justificativa de serem justas, uma vez que os alunos sempre foram/são tratados em “igualdade de condições”. Decisões avaliativas são pautadas pelos “melhores alunos” com base em tais critérios comparativos sem que se tome consciência das injustiças feitas. Ao comentar a reprovação de um aluno pela não-realização de tarefas escolares ao longo do ano (e não por dificuldades na aprendizagem), a supervisora de uma escola explicou-me o caso como uma questão de justiça para com os outros alunos. Qual seria a injustiça cometida em relação aos outros jovens com a aprovação do colega? A verdade é que a escola teme ser considerada menos exigente pelas famílias ao promover um estudante que foi descomprometido com suas tarefas. A decisão da escola se baseia nas regras estabelecidas para todos - se o estudante não as cumpriu, é preciso, então, aplicar-lhe alguma punição. O fato de o aluno aprender mesmo sem cumprir “as regras” (ou seja, de jeito diferente) não entra em discussão, porque, sobretudo, não se pode fugir às regras. No discurso pedagógico, a escola propõe-se a construir crianças e jovens pensantes, que saibam tomar decisões inteligentes, entre outras expectativas. Nas práticas diárias, no entanto, restringe, apaga, recolhe as singularidades, faz um “arrastão” nas diferenças, nas subversões ou atos de rebeldia. Suspende, expulsa, remaneja, aprova, desaprova, matricula novamente... (Rosa in Meyer e Soares, 2004, p.29). Há uma preocupação extrema da escola em padronizar ações, em estabelecer regras comuns a todos, em definir critérios quantitativos, objetivos e precisos. E nessa preocupação encontram-se as raízes da maioria das injustiças e das arbitrariedades. A virtude da regra reside na sua precisão. Mas ela apresenta duas limitações. A primeira: não há regras para todas as situações pelas quais passamos. A segunda: a regra nos diz o que fazer, mas não “por que fazê-lo”. Estas duas limitações são superadas pelos princípios. Se os princípios morais forem claros, não será necessário formular tantas regras (La Taille, 2001, 2006). Muitas vezes as escolas causam sérios prejuízos à vida dos estudantes apenas para obedecer determinados padrões, uniformizações, regras impostas em regimentos ou documentos oficiais, sem pensar que estão ferindo os princípios da dignidade, da liberdade, da felicidade do aluno. Isso não pode ser considerado justo, nem moralmente defensável. Segundo o autor, a justiça é a virtude central para o agir moral. O professor precisa atender a todos os alunos com base no princípio da igualdade de direitos. Mas ser justo não é oferecer uma escola igual para todos (o que acaba acontecendo em programas de inclusão) e, sim, garantir condições dignas de aprendizagem a cada um, valorizando suas diferenças. Condições dignas envolvem um atendimento individualizado a partir da compreensão pelos educadores da história de cada aluno e das necessidades e dos jeitos de ser de cada um. O que nos remete ao significado próprio da palavra diversidade. Diversidade tem sua origem em divergir, afastar-se progressivamente dos limites fixos e precisos, discordar, discrepar, questionar padrões, buscar a diferença. Uma educação inclusiva somente se efetiva, no contexto próprio da alteridade, da variabilidade e flexibilidade de posturas educativas frente a cada contexto. Não se pode pretender uma escola inclusiva que se determine por ações educativas padronizadas ou regras gerais e inflexíveis. Para se pensar em escola inclusiva é preciso não ter medo de inovar, de reconstruir as práticas educativas e avaliativas. Compreendendo os diferentes jeitos de viver e de aprender de cada aluno, retirando-os do “anonimato das salas de aula” em que hoje vivem, estaremos propondo espaços e tempos educativos adequados às suas possibilidades cognitivas e às suas necessidades afetivas. Significa compreendê-los e valorizá-los no que apresentam de único e peculiar como aprendizes e atendê-los com base nesse conhecimento, oferecendo-lhes melhores e mais significativas oportunidades de aprendizagem no ambiente escolarizado. Outras virtudes devem acompanhar a justiça. Só ser justo não basta. Muitas vezes, deixamos de ser justos porque nos falta coragem para defender o aluno das injustiças ou para evitá-las. Sabemos o que deve ser feito, mas não transgredimos as regras, o padrão, porque exige muito esforço e renúncia. Porque ser justo exige também generosidade – de oferecer atenção ao aluno, de “dar a outrem o que lhe falta” (La Taille, 2001, p.88). Exige a virtude da humildade: nos dispormos a dialogar, admitindo que o aluno pode ter idéias próprias, ter vontades, fazer reclamações. E exige a virtude da tolerância: o respeito à diversidade de de crenças, de raças, de jeitos de aprender. Leonardo, de 16 anos, alto, forte, grandão, cresceu e sentiu necessidade de sair do uniforme da escola. Passou a se vestir como roqueiro: calças rasgadas, pulseiras, cabelos pintados, piercings, cruz no pescoço, como seus amigos da escola, então, tudo mudou na escola: diz que a escola não entende isso, que ele foi aceito desde pequeno, enquanto era igual a todo mundo. (...) que a escola foi fazendo ele tirar as coisas que ele gosta de usar, só ficou mesmo a tatuagem. (...) Quanto à briga com o colega, sabe que agiu errado, que admitiu isso em seguida, mas que, se qualquer outro aluno “uniformizado” tivesse brigado, o tratamento do assunto seria diferente. Que após a briga, a escola o trocou de turma, que ele se sente sozinho e sem colegas. Leonardo diz que não tem vindo mais às aulas há duas semanas, que não tem mais condições de vir, que tem passado as noites numa casa de jogos eletrônicos ou em frente à televisão, em casa (Rosa in Meyer e Soares, 2004, p.27). A par das transformações que ocorrem diariamente, em todos os lugares, a escola ainda organiza o seu cotidiano com práticas de fixar, adaptar e modelar corpo e pensamento, desde a infância. Mesmo assim, crianças e jovens resistem a tais processos de padronização de comportamento, enviando mensagens de diferenciação por meio do uso de piercings, de sons, de roupas diferentes, de estilos e outras formas que a escola insiste em rejeitar e estigmatizar. Poderíamos perguntar: quem professores e professoras pensam que crianças e jovens estudantes são? Que querem que sejam? Como endereçam seus currículos e aulas? Em contrapartida, podemos perguntar: a quem crianças e jovens estudantes endereçam suas ações, suas mensagens e códigos? (op. cit., p. 28) É de outra concepção de justiça que se precisa falar: a justiça de valorizar as diferenças, de desejar, principalmente, que os alunos pensem de maneiras diferentes, de pensar de jeito diferente sobre os alunos, de buscar meios de dialogar com eles, de inventar estratégias pedagógicas diferentes diante das encruzilhadas. Principalmente é preciso desejar ser um professor, uma professora diferente a cada dia a partir do que aprender com tudo isto.

http://www.jussarahoffmann.com.br/site/artigo.asp?id=4&pagina=1

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